quinta-feira, 5 de março de 2015

O sentido espiritual da Quaresma

Origem da Quaresma
Imitando Cristo no seu deserto de 40 dias, que foi, por sua vez, a realização plena da imagem vétero-testamentária do povo que caminhou por 40 anos no deserto até chegar à terra prometida, a Igreja realiza a sua Quaresma: 40 dias nos quais ela se deixa, a exemplo de Jesus, conduzir para o deserto, lugar da tentação, mas, também, do encontro com Deus, para aí se preparar para a grande festa da Páscoa.

A Quaresma surgiu a partir de uma dupla necessidade: a prática da penitência para que os fiéis pudessem participar da Páscoa do Senhor e a necessidade da preparação mais intensa dos catecúmenos que recebiam, na Vigília Pascal, os sacramentos da iniciação cristã.

Assim sendo, a Quaresma possui uma dupla dimensão: a dimensão batismal e a dimensão penitencial. Na liturgia da Palavra são-nos propostos três ciclos de leitura: ano A (Quaresma Batismal); ano B (Quaresma Cristocêntrica); ano C (Quaresma Penitencial). O ciclo A é mais antigo e propõe textos que possuem uma dimensão marcadamente batismal, tendo em vista que neste período, já na Igreja primitiva, dava-se início à iniciação cristã dos adultos.

Exercícios quaresmais
A Quaresma é vivida por muitos cristãos, na maioria das vezes, como um fardo demasiadamente pesado. Muitos vivem as práticas da Quaresma – notadamente, a oração, o jejum e a esmola – como se elas significassem a satisfação do desejo descontrolado de Deus de ver-nos sobrecarregados de sacrifícios que servem para expiar os nossos muitos pecados. Essa é uma forma errada de ver a Quaresma. O que nela começamos, devemos continuar no decorrer do ano litúrgico.

Os assim chamados “exercícios quaresmais”, não seriam propriamente “exercícios” se não tivessem como finalidade criar em nós disposições e atitudes que estimulem a vida cristã durante todo o ano litúrgico. O que vivemos na Quaresma, então, deve produzir frutos maduros em nós. Os exercícios que aqui começamos não podem terminar neste tempo.

Jejum
Durante o período quaresmal, a Igreja nos convida, sobretudo, a três exercícios: o jejum, a oração e a esmola. Reflitamos um pouco sobre cada um desses exercícios. O jejum, por exemplo, é um dos exercícios quaresmais muito mal vividos. Vivemos o jejum como se Deus precisasse desse sacrifício para nos oferecer o perdão dos nossos pecados. Como conciliar essa mentalidade com Mateus 12, 7, onde o Senhor, citando Oséias 6,6, nos afirma que quer a misericórdia e não o sacrifício? Será então que não devemos fazer o jejum? Ou será que o espírito com o qual fazemos o jejum não está equivocado? Devemos modificar a nossa forma de ver o jejum. Não é que Deus precise do nosso jejum para poder nos perdoar, como se esse sacrifício fosse uma forma de aplacar a ira divina. Nós é que precisamos do jejum para aprendermos a nos relacionar com os bens da criação.

Pelo pecado original – doutrina católica apoiada na verdade que nos é revelada na Sagrada Escritura e muito negligenciada atualmente, sobretudo em alguns círculos teológicos – a verdadeira natureza das coisas ficou velada para o homem, e este, ao invés de reconhecer o Criador nas criaturas, acabou por idolatrar as criaturas, esquecendo-se do seu Criador. O jejum tira-nos da idolatria das criaturas.

O jejum nos ensina uma nova forma de lidar com os alimentos, vendo-os não como uma fonte de prazer somente, mas como dom de Deus. Através do jejum aprendemos a controlar a nossa sede de prazer e a não sermos mais dominados pelo instinto. Aprendemos que o prazer é benéfico, é também dom de Deus, mas nós é que devemos controlá-lo, e não ele a nós. A experiência que fazemos com o jejum redunda em todas as outras áreas da nossa vida, inclusive na própria sexualidade. Evágrio Pôntico diz no seu Tratado Prático que: “Quando a concupiscência se inflama, a extinguem a fome (jejum), a fadiga e a solidão.”

Oração
A oração, por sua vez, nos faz sair da ilusão de que nós somos capazes de resolver tudo com as nossas próprias mãos. Ela nos tira da nossa autossuficiência e nos projeta para o Deus verdadeiro, Aquele que é realmente onipotente. Este é o tempo favorável para através da oração diária nos tornarmos mais íntimos de Deus.

A Quaresma é um tempo propício para participarmos melhor da liturgia da Igreja e, também, para orarmos com a Palavra de Deus. A Palavra de Deus nos proporciona um itinerário espiritual. É ela que deve orientar a nossa vida espiritual na Quaresma e em qualquer tempo litúrgico.

Esmola

A esmola, ou a caridade, como quisermos chamá-la, nos faz quebrar a idolatria do ter. Pela esmola, aprendemos a dividir com o próximo aquilo o que Deus confiou a nós para que o administrássemos. Pela prática da esmola, entendemos que não somos donos de nada, mas meros administradores dos bens de Deus. A esmola tira-nos do perigo de sermos possuídos pelos bens. Às vezes, pensamos tanto ser donos dos bens que Deus nos confiou, que no final eles é que se tornam nossos donos, acabamos sendo possuídos pelas coisas. A esmola nos liberta dessa possessão e deixa o nosso coração livre para Deus.

São Máximo Confessor, reconhecendo que a avareza é um dos males que dominam o homem, nos estimula ao desprendimento, à esmola, quando nos diz na sua obra “Centúrias sobre a Caridade”, n. 18: “O amante do prazer ama o dinheiro para deleitar-se mediante ele. O que se vangloria para ser glorificado por ele. O que não tem fé para escondê-lo e custodiá-lo, tendo medo da fome, da velhice, da doença ou do exílio; e espera mais nele (no dinheiro) do que em Deus, autor e providência da criação toda, até dos últimos e menores seres vivos”.
Como podemos ver, essas práticas, então, não servem somente para este período do ano litúrgico. Elas são praticadas de modo mais intenso agora, como “exercício”, e depois continuam em todo o ano litúrgico. Que este seja nosso programa. Que o itinerário quaresmal não seja para nós um fardo a carregar, mas um programa de vida, um constante caminho de santificação.
Por fim, tenhamos sempre diante dos nossos olhos, sobretudo nestes dias de Quaresma, a “Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo”. A Cruz é o “sinal da vida”. É assim que São Gregório Magno a chama no Livro II dos Diálogos, quando narra o milagre pelo qual São Bento fora salvo da morte por envenenamento ao traçar sobre a taça de vinho o sinal da cruz: “Tomaram, pois, a resolução de colocar veneno no seu vinho. Quando, segundo o costume monástico, apresentaram ao Pai, que estava sentado à mesa, a taça de vidro com a bebida mortífera para ser abençoada, Bento estendeu a mão e traçou o sinal da cruz. A este gesto, a taça, que estava a certa distância dele, estalou e fez-se em pedaços, como se ao invés da Cruz lhe tivesse atirado uma pedra. O homem de Deus logo compreendeu que o vaso continha uma bebida mortal, pois não pôde suportar o sinal da vida.” Tenhamos todos os dias, começando pela Quaresma, esse sinal diante de nós. O chamado de Cristo para nós é um chamado à vida, mas não à vida nesse mundo pura e simplesmente. Cristo nos chama à vida verdadeira, a qual se alcança pela cruz, como Ele o fez.
Uma santa Quaresma a todos!

Padre Fábio Siqueira

Vice-diretor das Escolas de Fé e Catequese Mater Ecclesiae e Luz e Vida

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